A incompetência nacional segundo Cavaco
No último conclave social-democrata o dr. Pedro Santana Lopes cometeu um atrevimento fatal ao lançar a candidatura às eleições presidenciais do prof. Cavaco Silva, colando-a assim ao rumo do seu PPD-PSD, às aventuras do governo e à sorte da coligação.
Foi visível a irritação com que o ex-primeiro-ministro reagiu, a partir de Madrid, resmungando que não se encontrava em Lisboa (apesar do congresso decorrer em Barcelos…) e repetindo a tese da pouca estimulação convocada pela participação política nos dias que correm.
Ainda não era tudo e o dr. Pedro Santana Lopes esperaria bem pouco pela resposta, surgida sob a forma de «grito de alarme», em texto opinativo publicado no Expresso, com honras de manchete.
O conteúdo do artigo do prof. Cavaco não faz explicitamente pontaria ao dr. Santana Lopes. Só o atinge indirectamente pelo tempo e pela circunstância em que é publicado.
A origem degenerativa da «qualidade da classe política» não é datada no escrito, que apenas alude, vagamente, à sua eventual percepção pelos indígenas nos «anos mais recentes». Cita-se, primeiro, um documento da SEDES, Associação para o Desenvolvimento Social e Económico, do início de 2002, onde se refere a «centrifugação de alguns dos melhores valores do pessoal político e da gestão superior do Estado» e, depois, um outro da AEP, Associação Empresarial de Portugal, divulgado ao cair do pano sobre 2001, onde se manifesta preocupação pelos custos da mediocracia. E, no final do texto, lembra-se que a economia portuguesa diverge da espanhola e da média europeia desde 2001. Datas que coincidem, curiosamente, com o regresso do PSD ao poder.
Todavia, se as coisas, no entender do prof. Cavaco, se deterioram desde há alguns anos, porque carga de água só agora se decidiu a alertar para o fenómeno nas páginas do jornal mais influente e de maior audiência da paróquia?
A ideia que defende de que «os maus políticos expulsam os bons políticos», transmutada da Lei de Greshan, remete-nos para o séc. XVI, quando, num contexto de coexistência de duas moedas metálicas com curso legal, o inglês Thomas Greshan, retomava a tese, formulada por muitos autores anónimos do séc. XIV e, em especial, por Nicolau Oresme no seu «Tratado da Primeira Invenção das Moedas», de que a «má moeda expulsa a boa moeda», sendo esta última entesourada ou aplicada nas trocas internacionais. A lei não tem nada a ver com a actualidade monetária e cambial. Do mesmo modo que se pode invertê-la nos termos para exprimir que os «bons políticos devem expulsar os maus», também se poderia esgrimi-la para defender que «a boa ciência deve expulsar a falsa ciência» ou que «as pessoas inteligentes e honestas devem expulsar as pessoas espertas e oportunistas».
Os problemas, cuja génese o texto do prof. Cavaco detecta em «anos recentes», vêm de trás, muito de trás. Como disse o poeta, «o mal em Portugal é ancestral, tem sabor a sal, ruído nasal».
Cumpridos os ciclos dos escravos, das especiarias, do ouro, do volfrâmio, das colónias, estamos prestes a encerrar o último dos nossos eldorados, o dos fundos comunitários, inaugurado pelo dr. Soares e prodigamente utilizado pelo prof. Cavaco. E a história pátria mostra-nos que, quando não há nada a subsidiar a imprevidência colectiva, as coisas azedam e acabam em zaragata.
Durante o consulado do prof. Cavaco, os fundos comunitários foram fortemente responsáveis pela intensidade de crescimento do produto interno e as privatizações deram um contributo muito generoso para a amortização da dívida pública, não se privando o primeiro-ministro da época de gastar dinheiro do Estado e promover a aplicação de ideias peregrinas, como a actualização automática de carreiras do funcionalismo público, iniciativa magnânima que se tornou num verdadeiro quebra-cabeças para os seus sucessores. Contou com alguns bons ministros para o lançamento de infra estruturas, mas absteve-se da reforma fundamental da administração.
Mas estas curiosidades não são, a nosso ver, mais que pormenores no que respeita ao texto do prof. Cavaco Silva. Nem há nada de novo sob o sol, nem ocorreu qualquer deterioração relevante na nossa miserável classe política nos últimos anos. Nenhum observador desinteressado conseguirá descobrir diferenças substanciais para o que vem de trás. E quando o sentimento generalizado em relação aos políticos deixar de se resumir na eterna expressão popular de que «eles vão para lá para se governar e não para governar» o país será outro.
O atraso nacional não decorre de qualquer recente e hipotético dualismo entre a competência e dinamismo da sociedade civil e a incompetência de quem vegeta sob a égide do domínio público. A questão é que o Estado nunca nos deixou verdadeiramente ter sociedade civil. Sufoca-a a todo momento. Cobra-lhe impostos e afoga-a em burocracia e outras formalidades. Salvo raríssimas excepções, os próceres mais visíveis da nossa suposta sociedade civil, batem-se menos pela liberdade e valorização da iniciativa que pela influência nos arcanos do poder e as migalhas à mesa do orçamento. A sociedade civil em Portugal verdadeiramente não existe e o simulacro que dela se oferece é quase sempre representado por oportunistas ou imbecis. Não perceber isto é uma manifestação de incompetência.
luís.faria@luisfaria.com
Foi visível a irritação com que o ex-primeiro-ministro reagiu, a partir de Madrid, resmungando que não se encontrava em Lisboa (apesar do congresso decorrer em Barcelos…) e repetindo a tese da pouca estimulação convocada pela participação política nos dias que correm.
Ainda não era tudo e o dr. Pedro Santana Lopes esperaria bem pouco pela resposta, surgida sob a forma de «grito de alarme», em texto opinativo publicado no Expresso, com honras de manchete.
O conteúdo do artigo do prof. Cavaco não faz explicitamente pontaria ao dr. Santana Lopes. Só o atinge indirectamente pelo tempo e pela circunstância em que é publicado.
A origem degenerativa da «qualidade da classe política» não é datada no escrito, que apenas alude, vagamente, à sua eventual percepção pelos indígenas nos «anos mais recentes». Cita-se, primeiro, um documento da SEDES, Associação para o Desenvolvimento Social e Económico, do início de 2002, onde se refere a «centrifugação de alguns dos melhores valores do pessoal político e da gestão superior do Estado» e, depois, um outro da AEP, Associação Empresarial de Portugal, divulgado ao cair do pano sobre 2001, onde se manifesta preocupação pelos custos da mediocracia. E, no final do texto, lembra-se que a economia portuguesa diverge da espanhola e da média europeia desde 2001. Datas que coincidem, curiosamente, com o regresso do PSD ao poder.
Todavia, se as coisas, no entender do prof. Cavaco, se deterioram desde há alguns anos, porque carga de água só agora se decidiu a alertar para o fenómeno nas páginas do jornal mais influente e de maior audiência da paróquia?
A ideia que defende de que «os maus políticos expulsam os bons políticos», transmutada da Lei de Greshan, remete-nos para o séc. XVI, quando, num contexto de coexistência de duas moedas metálicas com curso legal, o inglês Thomas Greshan, retomava a tese, formulada por muitos autores anónimos do séc. XIV e, em especial, por Nicolau Oresme no seu «Tratado da Primeira Invenção das Moedas», de que a «má moeda expulsa a boa moeda», sendo esta última entesourada ou aplicada nas trocas internacionais. A lei não tem nada a ver com a actualidade monetária e cambial. Do mesmo modo que se pode invertê-la nos termos para exprimir que os «bons políticos devem expulsar os maus», também se poderia esgrimi-la para defender que «a boa ciência deve expulsar a falsa ciência» ou que «as pessoas inteligentes e honestas devem expulsar as pessoas espertas e oportunistas».
Os problemas, cuja génese o texto do prof. Cavaco detecta em «anos recentes», vêm de trás, muito de trás. Como disse o poeta, «o mal em Portugal é ancestral, tem sabor a sal, ruído nasal».
Cumpridos os ciclos dos escravos, das especiarias, do ouro, do volfrâmio, das colónias, estamos prestes a encerrar o último dos nossos eldorados, o dos fundos comunitários, inaugurado pelo dr. Soares e prodigamente utilizado pelo prof. Cavaco. E a história pátria mostra-nos que, quando não há nada a subsidiar a imprevidência colectiva, as coisas azedam e acabam em zaragata.
Durante o consulado do prof. Cavaco, os fundos comunitários foram fortemente responsáveis pela intensidade de crescimento do produto interno e as privatizações deram um contributo muito generoso para a amortização da dívida pública, não se privando o primeiro-ministro da época de gastar dinheiro do Estado e promover a aplicação de ideias peregrinas, como a actualização automática de carreiras do funcionalismo público, iniciativa magnânima que se tornou num verdadeiro quebra-cabeças para os seus sucessores. Contou com alguns bons ministros para o lançamento de infra estruturas, mas absteve-se da reforma fundamental da administração.
Mas estas curiosidades não são, a nosso ver, mais que pormenores no que respeita ao texto do prof. Cavaco Silva. Nem há nada de novo sob o sol, nem ocorreu qualquer deterioração relevante na nossa miserável classe política nos últimos anos. Nenhum observador desinteressado conseguirá descobrir diferenças substanciais para o que vem de trás. E quando o sentimento generalizado em relação aos políticos deixar de se resumir na eterna expressão popular de que «eles vão para lá para se governar e não para governar» o país será outro.
O atraso nacional não decorre de qualquer recente e hipotético dualismo entre a competência e dinamismo da sociedade civil e a incompetência de quem vegeta sob a égide do domínio público. A questão é que o Estado nunca nos deixou verdadeiramente ter sociedade civil. Sufoca-a a todo momento. Cobra-lhe impostos e afoga-a em burocracia e outras formalidades. Salvo raríssimas excepções, os próceres mais visíveis da nossa suposta sociedade civil, batem-se menos pela liberdade e valorização da iniciativa que pela influência nos arcanos do poder e as migalhas à mesa do orçamento. A sociedade civil em Portugal verdadeiramente não existe e o simulacro que dela se oferece é quase sempre representado por oportunistas ou imbecis. Não perceber isto é uma manifestação de incompetência.
luís.faria@luisfaria.com
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