Dissonâncias
(Publicado na Distribuição Hoje/Dez 2004)
As perspectivas de crescimento da distribuição moderna são impressionantes. Cerca de 1,8 mil milhões de euros de investimento previsto pelos principais grupos nos próximos cinco anos, vão ampliar consideravelmente a oferta no retalho alimentar. Mas também noutros sectores como os electrodomésticos, electrónica de grande consumo e mobiliário se antevêem investimentos de vulto.
Os agentes económicos são racionais e esta aposta forte na expansão estará seguramente sustentada numa análise cuidada do mercado. Mas, mesmo partindo do princípio que o fenómeno decorre, em parte, da capacidade de atracção dos novos formatos face à estagnação e consequente retracção dos canais tradicionais, a desejada expansão não pode deixar de inspirar-se numa estimativa positiva quanto ao crescimento do consumo e, implicitamente, da economia. Por isso, pensamos não ser inútil reflectir um pouco nas raízes desse optimismo, até porque as notícias que nos chegam vão, aparentemente, em sentido contrário.
Na verdade, vive-se um clima de instabilidade política e crise das finanças públicas.
Trata-se de um clima fictício. A instabilidade política é artificial e não favorece nada os seus actores principais. Os problemas decorrentes do desequilíbrio das finanças públicas, sendo graves, não são recentes. Pelo contrário: foram acentuados ao longo das três últimas décadas, tendo-se perdido a oportunidade de aproveitar os ciclos económicos positivos para trazer a despesa para um nível mais adequado das receitas, tarefa que não parecia assim tão complicada, até porque havia a ajuda dos fundos comunitários. E também não se estabeleceu um sistema e ética fiscais mais eficientes e justos. O que existe é insustentável.
Mas vamos à conjuntura: ela não apresenta problemas de maior, apesar da teatralização da política. Pelo contrário. Antes da dissolução do parlamento, o Eurostat, o organismo estatístico da União Europeia, colocava o forecast sobre Portugal a caminho da recuperação do crescimento económico. Todos os indicadores estatísticos apontam para o crescimento do produto e do consumo num contexto de estabilidade dos preços e também do desemprego, estimando-se para este último uma tímida recuperação a partir de 2005.
De acordo com um estudo divulgado pela APED, as vendas das insígnias atingiram 6,4% do valor do produto interno no último ano. A facturação global atingiu os 8,5 mil milhões de euros em 2003, um aumento de 7,5% face ao ano anterior, num contexto do aumento da área de venda de1,28 milhões em 2002 para 1,357 milhões de metros quadrados no último ano.
O consumo cresceu, o investimento tem vindo a recuperar lentamente após ter batido no fundo, as exportações aumentarem na medida do possível – não se pode exportar mais do pouco que existe na ausência de canais de distribuição eficientes e não se pode exportar de modo algum o que não existe.
Ora, acontece que, para além do folclore político da conjuntura, se sente no ar um mal-estar com as questões estruturais. Os nossos economistas pensadores queixam-se do modelo de crescimento, muito centrado na procura interna, consumo e investimento, em detrimento das exportações, o que coloca problemas sérios, a prazo, à balança de pagamentos.
Não exportamos, acham, o suficiente e cada vez oferecemos condições menos interessantes à entrada de investimento directo estrangeiro (deixámos os primeiros 25 lugares do ranking da competitividade internacional). Mercado de trabalho pouco dinâmico e qualificado, sistema fiscal pesado e ineficiente, justiça lenta e totalmente desadequada das exigências do mercado, cuidados de saúde maus e demasiado caros, excesso de burocracia e formalidades. Já não somos apenas os últimos entre os Quinze. Já estamos atrás da Eslovénia e de Chipre e, muito em breve, dos restantes novos membros da União. O panorama não podia ser pior.
Os problemas, de facto, não são novos, mas existe o sentimento que a sua solução não pode continuar a ser adiada. E, apesar disto, não se vislumbra nem vontade nem competência política para o fazer. O défice real das contas públicas, se excluirmos as receitas extraordinárias, ficará, este ano e no próximo, dois pontos percentuais acima do limite fixado pelas regras de convergência, que, como se sabe, vão entrar em período de oportuna revisão.
O drama é que, no meio deste desastre, o país acha que tem um problema conjuntural que não existe na realidade e prepara-se para ir referendar o dr. Santana Lopes como se daí saísse qualquer solução. Não há apenas uma divergência entre o negro que se pinta da conjuntura e o modo como ela se apresenta – em recuperação moderada. Não há tão só uma dissonância entre o que se sente sobre as deficiências estruturais e a ausência de soluções previstas e viáveis. Não adianta nada andar a discutir o modelo de crescimento (como se vivêssemos sob batuta planificadora), se não se derem condições ao desenvolvimento da iniciativa privada. Sem se reduzir a despesa pública, baixar os impostos, reformar finalmente a segurança social, mudar a legislação laboral e tornar eficiente a administração não há nada a fazer.
Há uma espécie de esquizofrenia colectiva., uma forte negação da realidade e, para compensá-la, uma imensa sede por entretenimentos.
Face a esta generalizada distracção, os ajustamentos necessários podem vir a custar baixa generalizada nos rendimentos. A pressão demográfica vai continuar a debilitar o financiamento do sistema de segurança social e é natural que ele venha a exigir, mesmo diminuindo as suas responsabilidades com os contribuintes, ainda mais do Estado, que continuará confrontado com a missão quase impossível de manter o défice global no nível exigido pela integração europeia. O quadro geral torna difícil acreditar num crescimento muito intenso do consumo.
Oxalá o optimismo não constitua mais uma dissonância dos nossos dias, pois a iniciativa privada bem precisa dele.
luís.faria@luisfaria.com
As perspectivas de crescimento da distribuição moderna são impressionantes. Cerca de 1,8 mil milhões de euros de investimento previsto pelos principais grupos nos próximos cinco anos, vão ampliar consideravelmente a oferta no retalho alimentar. Mas também noutros sectores como os electrodomésticos, electrónica de grande consumo e mobiliário se antevêem investimentos de vulto.
Os agentes económicos são racionais e esta aposta forte na expansão estará seguramente sustentada numa análise cuidada do mercado. Mas, mesmo partindo do princípio que o fenómeno decorre, em parte, da capacidade de atracção dos novos formatos face à estagnação e consequente retracção dos canais tradicionais, a desejada expansão não pode deixar de inspirar-se numa estimativa positiva quanto ao crescimento do consumo e, implicitamente, da economia. Por isso, pensamos não ser inútil reflectir um pouco nas raízes desse optimismo, até porque as notícias que nos chegam vão, aparentemente, em sentido contrário.
Na verdade, vive-se um clima de instabilidade política e crise das finanças públicas.
Trata-se de um clima fictício. A instabilidade política é artificial e não favorece nada os seus actores principais. Os problemas decorrentes do desequilíbrio das finanças públicas, sendo graves, não são recentes. Pelo contrário: foram acentuados ao longo das três últimas décadas, tendo-se perdido a oportunidade de aproveitar os ciclos económicos positivos para trazer a despesa para um nível mais adequado das receitas, tarefa que não parecia assim tão complicada, até porque havia a ajuda dos fundos comunitários. E também não se estabeleceu um sistema e ética fiscais mais eficientes e justos. O que existe é insustentável.
Mas vamos à conjuntura: ela não apresenta problemas de maior, apesar da teatralização da política. Pelo contrário. Antes da dissolução do parlamento, o Eurostat, o organismo estatístico da União Europeia, colocava o forecast sobre Portugal a caminho da recuperação do crescimento económico. Todos os indicadores estatísticos apontam para o crescimento do produto e do consumo num contexto de estabilidade dos preços e também do desemprego, estimando-se para este último uma tímida recuperação a partir de 2005.
De acordo com um estudo divulgado pela APED, as vendas das insígnias atingiram 6,4% do valor do produto interno no último ano. A facturação global atingiu os 8,5 mil milhões de euros em 2003, um aumento de 7,5% face ao ano anterior, num contexto do aumento da área de venda de1,28 milhões em 2002 para 1,357 milhões de metros quadrados no último ano.
O consumo cresceu, o investimento tem vindo a recuperar lentamente após ter batido no fundo, as exportações aumentarem na medida do possível – não se pode exportar mais do pouco que existe na ausência de canais de distribuição eficientes e não se pode exportar de modo algum o que não existe.
Ora, acontece que, para além do folclore político da conjuntura, se sente no ar um mal-estar com as questões estruturais. Os nossos economistas pensadores queixam-se do modelo de crescimento, muito centrado na procura interna, consumo e investimento, em detrimento das exportações, o que coloca problemas sérios, a prazo, à balança de pagamentos.
Não exportamos, acham, o suficiente e cada vez oferecemos condições menos interessantes à entrada de investimento directo estrangeiro (deixámos os primeiros 25 lugares do ranking da competitividade internacional). Mercado de trabalho pouco dinâmico e qualificado, sistema fiscal pesado e ineficiente, justiça lenta e totalmente desadequada das exigências do mercado, cuidados de saúde maus e demasiado caros, excesso de burocracia e formalidades. Já não somos apenas os últimos entre os Quinze. Já estamos atrás da Eslovénia e de Chipre e, muito em breve, dos restantes novos membros da União. O panorama não podia ser pior.
Os problemas, de facto, não são novos, mas existe o sentimento que a sua solução não pode continuar a ser adiada. E, apesar disto, não se vislumbra nem vontade nem competência política para o fazer. O défice real das contas públicas, se excluirmos as receitas extraordinárias, ficará, este ano e no próximo, dois pontos percentuais acima do limite fixado pelas regras de convergência, que, como se sabe, vão entrar em período de oportuna revisão.
O drama é que, no meio deste desastre, o país acha que tem um problema conjuntural que não existe na realidade e prepara-se para ir referendar o dr. Santana Lopes como se daí saísse qualquer solução. Não há apenas uma divergência entre o negro que se pinta da conjuntura e o modo como ela se apresenta – em recuperação moderada. Não há tão só uma dissonância entre o que se sente sobre as deficiências estruturais e a ausência de soluções previstas e viáveis. Não adianta nada andar a discutir o modelo de crescimento (como se vivêssemos sob batuta planificadora), se não se derem condições ao desenvolvimento da iniciativa privada. Sem se reduzir a despesa pública, baixar os impostos, reformar finalmente a segurança social, mudar a legislação laboral e tornar eficiente a administração não há nada a fazer.
Há uma espécie de esquizofrenia colectiva., uma forte negação da realidade e, para compensá-la, uma imensa sede por entretenimentos.
Face a esta generalizada distracção, os ajustamentos necessários podem vir a custar baixa generalizada nos rendimentos. A pressão demográfica vai continuar a debilitar o financiamento do sistema de segurança social e é natural que ele venha a exigir, mesmo diminuindo as suas responsabilidades com os contribuintes, ainda mais do Estado, que continuará confrontado com a missão quase impossível de manter o défice global no nível exigido pela integração europeia. O quadro geral torna difícil acreditar num crescimento muito intenso do consumo.
Oxalá o optimismo não constitua mais uma dissonância dos nossos dias, pois a iniciativa privada bem precisa dele.
luís.faria@luisfaria.com
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