Choques e vagas

Os programas eleitorais dos partidos em competição são, em si mesmos, irrelevantes, atendendo a que quase ninguém os lê. O que vai ficar na retina do eleitorado é um ou outro slogan, um ou outro episódio mais picaresco ou menos nobre. Os insultos, as traições, o oportunismo e a baixeza moral não abandonarão a consciência dos eleitores na hora da decisão. Tudo o que dá azo a troça e maledicência tem a preferência popular.
Como a previsibilidade do desastre passou à categoria de tema nacional, os políticos oferecem, como instrumentos de propaganda, choques para todos os gostos. Será que ainda têm a estúpida pretensão de nos electrizar?
Estas coisas, como o resto da campanha, são inventadas, nos bastidores, por incontornáveis consultores de imagem, cujas cabecinhas são configuradas pelo mainstream da imbecilidade mediática.
Como acham que os meios se podem sobrepor atabalhoadamente às mensagens, adoptaram unanimemente a ideia dos «choques». Só espanta que, no meio da «vaga» de frio glaciar que as televisões procuraram converter em espectáculo de abertura dos telejornais, os nossos consultores não tenham aproveitado o momento para pôr os políticos a patinar na neve mascarados de ursos polares.
A vaga de frio não existiu como espectáculo digno desse nome. Ninguém morreu na rua enregelado frente às câmaras, os hospitais não sobrelotaram, não aconteceram calamidades de vulto e não houve qualquer registo anormal de acidentes. As reportagens de rua foram rapidamente recolhidas para que o excesso de ridículo não encolhesse as audiências.
Partindo do princípio, pouco credível, de que a televisão, como sempre reclama, é inocente e que tudo isto apenas reflecte o gosto dos consumidores, o sentimento da grande massa dos cidadãos, então é o partido dos telespectadores que vai definir se há ou não maioria absoluta a partir de 20 de Fevereiro. Pelo que, para a inteligência das campanhas eleitorais, o importante é que fique, neste subconsciente colectivo impregnado pela ordem mediática, uma imagem, uma impressão que funcione «positivamente» no momento da decisão. No caso do eng. Sócrates até lhe mandaram seguir uma estratégia simples: «estás à frente, não faças ondas, não fales, não estragues». Em suma, não faças política. Os resultados estão à vista: o eng. Sócrates perdeu a maioria absoluta nas sondagens, conferindo verosimilhança a todas as conjecturas sobre a trapalhada de alianças que se vai seguir à dissolução do governo maioritário.
O interesse da campanha resume-se praticamente ao domínio do simbólico. O resto, os programas, pouco mais revelam que intenções vagas, promessas já feitas, disparates perigosos (como algumas medidas propostas para a segurança social), objectivos inverosímeis, fuga a compromissos e demasiadas semelhanças. O centro político, responsável pela situação a que se chegou, tem um excelente instinto de sobrevivência. O prof. Freitas do Amaral veio dar uma ajuda, recordando-nos da sua existência.
Enquanto mero simbolismo, o «choque de gestão» parece preferível ao «choque tecnológico». Invoca a ideia de que é preciso aproveitar melhor os recursos, aumentando a eficácia da administração e evitando assim a tentação de subir muito mais a receita. O «choque tecnológico» tresanda a aumento de despesa. É de desconfiar do envolvimento público em iniciativas voluntaristas e dispendiosas quando não se conhecem ainda os resultados da nova programação dos fundos comunitários, que o país está a negociar sem governo, graças à alta e avisada iniciativa do senhor Presidente da República.
O PSD, depois de dizer que ia baixar os impostos, limita-se agora, numa versão minimalista da questão, a prometer que não os vai subir. Os socialistas são suspeitamente evasivos quanto à questão e a reaparição do eng. Guterres, por agora apenas como figurante no filme de campanha, é mau presságio. O eng. Guterres reaparece a pretexto de ideia comunitária, inscrita na chamada «agenda de Lisboa», de tornar a Europa na sociedade do conhecimento mais avançada do mundo. Não é mau fixarem-se horizontes ambiciosos às políticas mas convém não ultrapassar aquilo que é razoável face às realidades e acontece simplesmente que a actual posição competitiva da Europa não justifica rasgos megalómanos deste tipo. Este desfasamento esquizofrénico da realidade foi o que melhor caracterizou o consulado do eng. Guterres, que acabou, como se sabe, a caminho do pântano. E ainda recentemente.

luís.faria@luisfaria.com

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