David & Golias?

(Publicado na Distribuição Hoje Fev/2005)

A compra da Gillette pela Procter and Gamble é um bom pretexto para retomar o velho tema da concentração empresarial. Uma operação que envolveu, nada menos nada mais, que 57 mil milhões de dólares. Produtores e distribuidores travam uma luta de titãs que se quer infinita. Desde sempre nos habituámos a ouvir que a concentração, o poder de mercado ganho em cada um dos campos, tem a imensa vantagem de compensar a tirania resultante do mesmo fenómeno no outro. Será que, por não vivermos num mundo perfeito, também os mercados têm de ser necessariamente imperfeitos?
Os grandes conglomerados da produção de bens de consumo de massa, sejam bens alimentares sejam electrodomésticos, produtos de higiene, utensílios para o lar ou comida para animais exercem um razoável poder negocial sobre as cadeias distribuidoras ou, no mínimo, desfrutam de uma autonomia confortável em relação ao que se passa com outros fornecedores, que conseguem margens inferiores e maiores exigências quanto à manutenção dos seus produtos em linha.
Dizem os velhos princípios económicos que a cartelização excessiva de qualquer segmento de actividade não é benévola para o mercado. Todavia, os grandes distribuidores argumentam que a única forma do sector do comércio resistir aos ditames dos grandes fornecedores é responder-lhes na mesma moeda, ou sejam, criando e amplificando colossos empresariais. A quadratura do círculo? Talvez. Em primeira linha, com consequências desagradáveis para quem tem menos poder, ou, por outras palavras, dimensão, para dar um murro na mesa de uma negociação em defesa das suas posições. Não vale a pena especular muito sobre o assunto pois todos precisamos, com sentido prático, de viver, de ir vivendo, de ir cumprindo a nossa atarracada vidinha e aquilo que é tem muita força, pois então. Todos protestam à boca pequena mas ninguém berra não vá ficar sem língua.
Contamos com associações pretensamente representativas de empresários para dirimir estas questões num contexto de «auto-regulação». Existe uma organização de fornecedores, uma outra representativa dos grupos de distribuição moderna e uma terceira que terce supostamente armas pelos pequenos empresários. Acontece que, além de protocolos para fazer vista, não auto-regulam nada.
Mas, acima disso, há a regulamentação fixada pela legislação. O nosso quadro legal de regulamentação da concorrência é vasto e, por vezes, actual e acertado. Só que os resultados da sua aplicação são escassos. É, aliás, sabido, criticado e debatido que a nossa economia enferma de grandes debilidades, insuficiências e distorções no funcionamento da concorrência, o que limita sobremaneira o dinamismo dos mercados.
No caso concreto do comércio e distribuição, mais que conflitos entre fornecedores e distribuidores, que ocorrem tradicionalmente em surdina, o que tem emergido é a clivagem entre dimensões empresariais e conceitos e formatos. Originando uma polémica que resvala, não raras vezes, para o domínio emocional e para consequências políticas indesejáveis, as quais reduzem, do ponto de vista da representatividade global, a capacidade de intervenção política do sector. Em verdade, se os grupos têm o peso político decorrente da sua expressão económica, que é muito ampla, o outro lado também conta com uma representatividade institucional com significativa audição e influência juntos dos orgãos de decisão.
São incontornáveis, por um lado, as vantagens da obtenção de escala. Ela é indispensável aos ganhos de eficiência no interior da cadeia do produto e à satisfação do consumidor no que respeita à concentração no mesmo espaço de uma expressiva diversidade de oferta. Por outro lado, a sobrevivência de pequenas unidades, protagonizando o conceito de comércio de proximidade, assegura um segmento de oferta imprescindível na perspectiva do benefício do cidadão consumidor e é vital para a requalificação das cidades, um dos principais eixos de competitividade no mercado europeu.
A decadência do comércio dito «tradicional» está associado à emergência da distribuição moderna num contexto de degeneração rápida e progressiva das cidades.
Daí que, como em nenhum outro país do planeta, se tenham edificado tantas e tão grandiosas alternativas à vivência social que foi expulsa dos centros urbanos. Esta imprevidência, esta indigência cultural que a exprime a tacanhez da pequena burguesia reinante, esta irresponsabilidade política criou as condições de mercado para que os novos formatos se confundissem praticamente com o negócio de retalho.
Uma política de requalificação das cidades conjugada com reabilitação do mercado urbano de retalho, o aproveitamento da internacionalização dos grupos distribuidores para promover a comercialização de produtos nacionais, o reforço na cooperação entre as pequenas unidades e alguma sensatez na produção e eficiência na aplicação da legislação poderão dar contributos positivos para o reequilíbrio do sector.
Não merece a pena continuar a fazer disparates legislativos, mal preparados e pior aplicados, enquanto não se compreenderem os motivos do duvidoso duelo entre David e Golias que caricaturiza o sector.

luis.faria@luisfaria.com

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