A quadratura do ciclo

A economia descolou do seu ciclo de crescimento acima da média europeia, os consumos socializaram-se, ou seja, o consumo privado perdeu para o consumo público peso no consumo total, e o problema do défice das contas públicas, sem solução à vista, condiciona toda a actividade económica e poderá condicioná-la ainda mais se obrigar a novo aumento da carga fiscal.
No meio deste panorama deprimente, os grupos de distribuição aumentam lucros, registam crescimento e apostam em projectos de expansão. É anunciada pelos principais grupos a abertura de mais lojas, o que só se pode fundamentar na crença de que o consumo mantém razoável espaço de progressão e que, no interior do país, o comércio tradicional ainda representa uma quota interessante de mercado a conquistar.
O grupo Jerónimo Martins, que subiu as suas vendas em 3,6% o ano passado em relação a 2003, atingindo um volume de negócios de 3,5 mil milhões de euros, quer investir 90 milhões de euros por ano até 2007 no mercado português, apontando para a abertura de 50 novas unidades comerciais (25 lojas Pingo Doce e 25 Feira Nova). A Modelo Continente, cujos lucros ascenderam a 114 milhões de euros, no ano passado, consubstanciando um crescimento de 53% em relação a 2003, pretende investir 200 milhões de euros em novas lojas em Portugal, tirando partido do desbloqueamento na atribuição de novas licenças comerciais. No conjunto, os quatro grandes grupos distribuidores (Sonae, Jerónimo Martins, Auchan e Carrefour) querem abrir mais de 220 novas lojas e os discounts (Lidl e Tengleman) querem implantar mais 124 estabelecimentos.
Não duvidamos que as decisões de investimento estejam fundamentadas. Aliás, descortinam-se três boas razões para o optimismo nelas contido. A primeira assenta na expectativa de que os governos procurarão manter artificialmente, «administrativamente», algum poder de compra com o objectivo de assegurar a própria sobrevivência. Não se imagina que vão existir alterações de rendimento ou reduções significativas de emprego na função pública. Depois porque, na perspectiva do processo de integração com a economia dos países da União Económica e Monetária, não é sustentável qualquer descida drástica do nível de vida. A verdade é que vivemos com preços europeus mas padrões de vida muito inferiores, cada vez mesmo mais distantes, da média da eurolândia. E há uma última e curiosa razão: a chamada «economia paralela está generalizada e baralha todos os indicadores, tornando até interessante perguntar se realmente temos este rácio do défice sobre o produto face às dificuldades para aferir do impacto da informalidade sobre o conjunto da riqueza contabilizada.
Mas convém não subestimar as contrariedades que pairam no ar. O problema do défice é mesmo grave, não tanto pela sua grandeza intrínseca mas porque não tem solução à vista. Qualquer das que estão disponíveis implica uma factura política muito pesada – redução do emprego público e dos privilégios associados à protecção social dos trabalhadores do Estado. Não há nem vontade nem capacidade para pagá-la. E, não se fazendo nada, de acordo com um exercício de Vítor Bento, presidente da SIBS e da Unicre, em 2050, a dívida atingirá 365 % do produto e o défice os 23,6 %. Longo prazo? Pois, se olharmos para o que acontecerá nos tempos mais próximos e no pressuposto de um crescimento do PIB ao ritmo anual médio de 2,5% e uma inflação de 2%, em 2010, a dívida pública atinge os 75% do PIB e o défice os 5,9%.
Por outro lado, as famílias, sufocadas por endividamento, precisam de libertar rendimento disponível, as empresas têm de se financiar, capitalizar e investir e as autoridades o mais que dizem é que, «em princípio», não aumentam os impostos, enquanto se vai falando por aí ou na inevitabilidade de aumentar o IVA em dois pontos, em acabar com algumas taxas intermédias deste imposto e em subir os impostos especiais. Se as coisas correrem mal é fatal isto acontecer e o problema é que as coisas devem vir mesmo a correr mal, começando a nossa carga fiscal a correr o risco de se tornar uma das mais pesadas na União Europeia.
A posição ambígua do actual Governo quanto ao agravamento da carga tributária faz antever que vai mesmo subir os impostos para compensar o aumento de despesa previsto com o reforço de pensões aos carenciados mais idosos, abandono das portagens nas SCUT, participação no «choque tecnológico», distribuição de licenciados pelas empresas etc. E, embora a revisão do critério comunitário respeitante ao défice traga maior capacidade de monitorização do problema, a dificuldade em reduzir o peso sobre a economia de um Estado excessivamente endividado (só a saúde e a educação devoram bem mais de metade do total da despesa) vai retrair mais os recursos libertos para a iniciativa privada.
Para que tudo corra bem é preciso que a iniciativa privada relance o crescimento económico, a um ritmo intenso, num contexto em que o crescimento previsto para o produto global, este ano, se fica pela metade. E para que as empresas financiem este processo é necessário que desça a carga fiscal e esta, ao que parece, vai aumentar. Estaremos perante a quadratura do ciclo económico?

luis.faria@luisfaria.com

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