A coroação de Sampaio

A avaliação do consulado de Jorge Sampaio tem muito mais interesse que a opereta em curso imposta pela sua sucessão. Muita boa gente dispõe-se agora a dar nota positiva ao ainda Presidente. José Miguel Júdice acha mesmo que a interpretação das competências presidenciais materializadas no mandato de Sampaio deve constituir um paradigma para o regime actual. Nesta ordem de ideias a expulsão de Santana Lopes constituiu um acto profilático em relação ao «populismo» que ameaçaria os alicerces do regime em que vivemos. Além disso, Sampaio não dispunha, supostamente, de alternativas credíveis à esquerda (na verdade, o PS estava manietado pelo inacreditável processo «Casa Pia») e o próprio PSD quase que aplaudia em aclamação a rejeição de Santana Lopes.Ainda bem que a glorificação, ou, no mínimo, o afável reconhecimento e «compreensão» quanto ao desempenho de Jorge Sampaio, nos revela, finalmente, uma razoável explicação para o extraordinário afastamento de Santana. As trapalhices eram coisa pouca e até divertida; no fundo, o homem ameaçava o regime. O raciocínio, todavia, peca num pormenor: passa pela cabeça de alguém que o «menino guerreiro» fosse capaz de tal façanha? Tanto o delírio como a mentira têm, ou deveriam ter, limites.Revela, porém, pela voz de alguns dos seus principais protagonistas, que o regime se sente ameaçado pela decomposição moral, pela falência do Estado, pela incompetência generalizada, pela ineficiência absoluta dos principais serviços que, supostamente, o Estado deve prestar em troca do (pesadíssimo) esforço fiscal que impõe aos cidadãos. A protecção social não tem dinheiro para pagar desemprego e reformas, o sistema público de saúde é uma visão do inferno, o sistema judicial é o que está à vista e o educativo, controlado pelos sindicatos e pelo funcionalismo, é um caos que nos atirou para a condição de ineptos da Europa.O regime pôs o País de gatas e na sociedade civil não se vislumbram alternativas, atendendo à confrangedora dependência absoluta do Estado em que se colocaram as suas organizações ditas representativas. Sente-se, sentem os seus beneficiários e mandatários, que o regime está em estado de coma e receia-se que o bom povo possa ir atrás de alguém que, mesmo não indo a lado algum, não vá por aqui. O regime, plasmado numa estuporada aliança entre alguns conglomerados e respectivos assalariados de luxo, a «esquerda« política estabelecida, a que se associou mais recentemente a «extrema-esquerda» oportunista, o funcionalismo desmesurado e pago a peso de ouro e uma classe média fictícia feita de gente convencida que enriquecera subitamente, mete água por todo o lado. Agora resta saber até que ponto Cavaco Silva, o único candidato viável do regime (é penoso ver o patético ocaso de figuras como Soares e Alegre), resistirá à tentação de cavalgar uma eventual revolta dos lusitanos contra a miserável pequenez do seu destino. Semelhante ruptura não está na sua essência: Cavaco é do regime, gosta do Estado e com ele gastou mais que ninguém, colocando as contas da nação em roda livre. É pouco provável que tire proveito, até às últimas consequências, do precedente do despedimento had-hoc do primeiro-ministro que o Presidente agora em processo de coroação generosamente lhe abriu, seguramente na convicção de que estava, como lhe competia, a defender o regime.

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